Aumento do número de queimadas na Amazônia pode impactar a conta de energia elétrica

Professor da USP explica como o desmatamento, acentuado no governo Bolsonaro, traz consequências climáticas para o país

Quem estava no estado de São Paulo na última segunda-feira (19) estranhou a aparência do céu no início da tarde. Aquilo que parecia um aviso de tempestade, na verdade, era um sintoma do desmatamento acelerado no Centro-Oeste e no Norte do país.

Os resultados são maiores do que a escuridão que tomou a capital paulista. Os incêndios na Amazônia diminuem o número de chuvas produzidas e, consequentemente, o volume de água nos reservatórios que produzem energia hidrelétrica.

Quem sente no bolso é a população, que vê o preço da conta de energia subir. Como pano de fundo, está uma política antiambiental e omissa do governo de Jair Bolsonaro (PSL). É o que alerta o pesquisador e professor do Instituto de Energia e Ambiente da Universidade de São Paulo (IEE-USP) Pedro Côrtes.

O Brasil de Fato conversou com Côrtes para esclarecer os números e as prováveis consequências climáticas desse cenário. O Brasil registrou um aumento de 83% no número de focos de incêndio em relação ao ano passado (entre os dias 1º de janeiro e 19 de agosto de cada ano).

Os dados são do relatório do Programa de Queimadas do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) divulgado nesta terça-feira (20).

No mesmo período, foram registrados 72.843 focos. Esta é a maior onda de queimadas dos últimos cinco anos. Em 2018, foram contabilizados 39.759 focos.

Confira a íntegra da entrevista:

Brasil de Fato: Os focos de queimadas estão crescendo no país, principalmente na região da Amazônia. Dos dez municípios brasileiros com mais focos acumulados nos últimos cinco anos, nove estão na Amazônia Legal. O que esses dados revelam?
Temos verificado desde o início do governo Bolsonaro, até mesmo antes de ele assumir [a Presidência], por meio das declarações que fez, uma falta de preocupação e cuidado em relação às questões ambientais.

Na prática, isso funciona como uma espécie de carta branca para quem quiser desmatar e utilizar terras da União para fins particulares e, para isso, essas pessoas se valem do desmatamento e das queimadas sem que haja uma maior fiscalização e algum tipo de atitude por parte do governo para coibir.

Boa parte desse desmatamento ocorre em terras da União sem que haja qualquer tipo de autorização para isso, portanto, é feito à revelia da lei; não há fiscalização e pessoas ou grupos se apropriam de terras públicas para fins pessoais sem que haja qualquer tipo de compensação para o tesouro nacional.

O que me espanta é a leniência do governo, que se constitui em uma espécie de carta branca para quem quiser desmatar, porque sabem que dificilmente serão autuados pela fiscalização do Ibama, já que ela vem sendo drasticamente reduzida ao longo dos últimos meses.

Podemos relacionar esse fenômeno com o avanço do agronegócio?
Pela extensão de muitas dessas queimadas, significa que não é uma atividade do pequeno agricultor. São grandes extensões que demandam organização. É preciso ter uma equipe, equipamentos, acesso a determinadas áreas.

Efetivamente, há uma participação grande de grupos organizados com recursos financeiros mais vultosos para promover esse tipo de desmatamento. Não é o desmatamento de um pequeno produtor que quer fazer uma roça ou ter uma pequena área para criação de gado. São grandes extensões que vem sendo desmatadas.

Que possíveis consequências climáticas o aumento de queimadas pode acarretar a curto e longo prazo?
O que aconteceu ontem [segunda-feira, 19] com essa fumaça chegando de maneira bastante intensa à Região Metropolitana de São Paulo, infelizmente, é um exemplo didático do alcance climático desse tipo de atividade.


Além de enfrentarmos um período natural de estiagem, como é o início do segundo semestre, os volumes previstos de chuva ficarão abaixo do esperado

 

Muito se tem dito a respeito dos “rios voadores”, que nada mais são do que a umidade que está sobre a Amazônia, não consegue ultrapassar a barreira dos Andes, margeia os Andes pelo lado territorial e entra pela região Centro-Oeste, segue pelas regiões Sudeste, Sul e leva essa umidade para uma região onde há alta produção agrícola e industrial — não só no Brasil, como também nos países vizinhos.

Algumas pessoas talvez tenham dificuldade de visualizar como isso acontece. Essa fumaça mostrou que aquilo que é gerado em determinadas regiões do Brasil, como a Amazônia, acaba sendo transportado pelo vento para regiões como São Paulo. Ou seja, fato é que essa umidade gerada pela Amazônia é transportada para regiões distantes assim como a fumaça das queimadas.

Quando a gente promove o desmatamento, acontece que o capim [que fica após a retirada de vegetação], que tem uma raiz superficial, não consegue extrair umidade do solo como fazem as grandes árvores da Amazônia, onde há raízes que vão a dezenas de metros drenando a água do subsolo e, por meio da evaporação, formam as nuvens dos chamados "rios voadores".

A partir do momento que começa a desmatar, além dos problemas ambientais locais, há uma redução na formação desses “rios voadores”. Consequentemente começa a ter uma redução do volume de chuvas na região Centro-Oeste, importante área agrícola, além das regiões Sudeste, Sul e na Argentina, Paraguai e Uruguai. Isso por si só já promove uma alteração climática.

Temos enfrentado, nos últimos anos, uma redução do volume de chuvas que faz com que grandes reservatórios para produção de energia hidrelétrica, como Três Marias (MG), Serra da Mesa (GO) e outros tenham o nível muito baixo, impossibilitando a geração de energia.

Fato é que nós estamos com a bandeira tarifária vermelha para energia elétrica, que é extremamente elevada. E a Agência Nacional de Energia Elétrica alegou risco hidrológico, ou seja: além de enfrentarmos um período natural de estiagem, como é o início do segundo semestre, os volumes previstos de chuva ficarão abaixo do esperado.

 

O que falta para o governo é um plano ambiental que deveria encarar a Amazônia como uma fonte de recursos

 

Qual o tipo de política que precisaríamos para um cenário de menos incêndios, desmatamento e consequências negativas para a população?
Na verdade, o que falta para o governo atual é alguma política efetivamente ambiental. O que ele tem é uma política antiambiental. Existe uma política negacionista dos problemas ambientais, das alterações climáticas, dos problemas que a gente vem enfrentando não só no clima, mas também tendo em vista as repercussões que isso pode ter no exterior e que podem acabar prejudicando muito a nossa pauta de exportações em um momento extremamente crítico para nossa economia.

O que falta para o governo é um plano ambiental que deveria, entre outras coisas, encarar a Amazônia como uma fonte de recursos, mas não como uma visão do mau extrativista que é simplesmente desmatar uma área, aproveitar a madeira e colocar ali um pasto.

A Amazônia tem uma função ambiental extremamente relevante. Ela tem uma biodiversidade fantástica e muito que se encontra na flora poderia ser traduzido, por exemplo, na produção de novos medicamentos e novos produtos químicos. Mas não nenhum incentivo do governo em relação a isso.

O governo encara a Amazônia da mesma maneira que outras áreas foram encaradas ao longo da história do Brasil: como áreas onde se pode entrar, extrair madeira, ocupar sem pensar nas consequências e, depois, o prejuízo fica para a população, o ambiente e a União.

 

Fonte: Brasil de Fato